Considerações sobre a autonomia esportiva

A autonomia desportiva é considerada um dos grandes temas jurídicos do sistema desportivo nacional, principalmente após a sua constitucionalização ocorrida em 1988, fruto da sugestão e redação de Álvaro Melo Filho. Está consagrada no inciso I do artigo 217, o qual se explicita que é dever do Estado respeitar e observar a “autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações quanto à sua organização e funcionamento”.

Ao longo dos trabalhos da Constituinte, o inciso supra citado tinha a seguinte redação: “a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações quanto à sua organização e funcionamento internos “. Ressalta o jurista Álvaro Melo Filho que a expressão internos foi retirada em segunda votação na Comissão de Sistematização, sem a ocorrência de debates. Visava alterar o seu alcance e atender a interesses imediatistas de grupos e pessoas, mas que na prática, não resultou em qualquer mutação normativa ou interpretativa, uma vez que foi mantida a expressão sua que, por si só, significa própria, sendo suficiente para delimitar a autonomia às matérias interna corporis dos entes desportivos.[1]

Com essa afirmação já delineia o jurista que o ambiente de autonomia dos entes participantes do mundo esportivo é interno, relativo às questões de organização interna da categoria. Mas o assunto não se limita a somente estas.

A origem da palavra autonomia é grega, associando os termos autos, si mesmo, e nomos, lei, ou legislação autônoma, significando a faculdade de organizar-se juridicamente, reconhecido pelo Estado, declarando-a obrigatória.

Diante de um Estado soberano, é evidente que a autonomia desportiva não significa a total independência dos entes desportivos do alcance estatal, uma vez que as competências e poderes restritos à insurgência do ordenamento jurídico, não admite o exercício de direitos ilimitados e absolutos, mas atribuindo uma certa discricionariedade às entidades na condução de sua organização e ação interna. É a possibilidade de ação dentro de um âmbito pré-determinado pela Constituição Federal, por princípios gerais do direito e até normas infraconstitucionais que regulem certas situações abstratas.

Também se considera a autonomia desportiva como um princípio constitucional:

 

“        De todo modo, é preciso reportar que a autonomia das entidades desportivas dirigentes e dirigidas (art. 217, I) é princípio constitucional que não pode ser desfigurado ou sofrer restrições legais, doutrinárias ou jurisprudenciais(…)

Com efeito, a autonomia desportiva é, induvidosamente, um princípio, e, como tal, constitui a essência (razão de ser do próprio ser) da legislação desportiva porque a inspira (penetra no âmago), fundamenta-a (estabelece a base) e explica-a (indica a ratio legis).”[2]

 

É necessário tecermos algumas considerações a respeito do significado do que realmente seja um princípio.

A palavra princípio aparece em diversos sentidos, como começo, início. Visto em sua acepção geral, corresponde às “proposições diretoras de uma ciência, às quais todo o desenvolvimento posterior dessa ciência deve estar subordinado”[3]. Podemos colocá-lo como base, caminho a ser trilhado, idéias fundamentais que norteiam a ciência jurídica, na elaboração das leis.

Celso Antonio Bandeira de Mello, descreve princípios jurídicos como:

 

“        Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico(…)

Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais(…)“[4]

 

Por esta descrição, os princípios formam bases fundamentais, o espírito norteador de um sistema jurídico, irradiando disposições pelas normas, em todos os ramos do direito, quais venham a definir diretrizes a tutelar situações subjetivas. São pontos básicos, que servem de partida ou de elementos vitais do próprio direito. Indicam o seu alicerce, funcionando também como verdadeiras garantias à perfeita aplicação do direito objetivo. Não são concretos, mas possuem um grau de abstração maior que leis gerais.

Não somente funcionando como bases fundamentais do qual defluem valores e bens em que se apóia o direito vigente, mas demonstrando também a prática da positivação de princípios jurídicos, Canotilho coloca “os princípios, que começam por ser à base de normas jurídicas, podem estar positivamente incorporados, transformando-se em normas princípio e constituindo preceitos básicos da organização constitucional.”[5]. O jurista também diferencia princípios de normas, pois estas possuem uma imposição imediata vinculante para certo tipo de questão, contendo uma regra.[6]

Sendo nosso sistema jurídico positivo praticado na formação constitucional como ápice do ordenamento, é na Constituição Federal que encontramos a sede de diversos princípios jurídicos. José Afonso da Silva procura distinguir princípios constitucionais fundamentais de princípios gerais do Direito Constitucional, descrevendo:

 

“        Vimos já que os primeiros integram o Direito Constitucional positivo, traduzindo-se em normas fundamentais, normas-síntese ou normas-matriz, ‘que explicitam as valorações políticas fundamentais do legislador constituinte’, normas que contêm as decisões políticas fundamentais que o constituinte acolheu no documento constitucional. Os princípios gerais formam temas de uma teoria geral do Direito Constitucional, por envolver conceitos gerais, relações, objetos, que podem ter seu estudo destacado da dogmática jurídico-constitucional.“[7]

 

Neste sentido por princípios gerais, no âmbito constitucional estariam a rigidez e a supremacia da Constituição, enquanto os fundamentais seriam os demais específicos como o da igualdade, devido processo legal e o da autonomia desportiva. Sem princípios, a Constituição pareceria mais um aglomerado de normas, tendo em comum, apenas o fato de estarem juntas no mesmo diploma jurídico, do que um todo sistemático e congruente.[8] Eles funcionam também como critério de interpretação das normas no processo de criação infraconstitucional, na aplicação do direito ao caso concreto e a todas as pessoas, no momento da realização de seus direitos.

Tratando-se do tema da autonomia atribuída a entes de natureza jurídica privada, além da desportiva, também se encontra embutido na Carta Maior do país a garantia da autonomia sindical e universitária (arts. 8º e 207, respectivamente).

Não somente na Constituição Federal, mas a principiologia da autonomia desportiva também se prova nas estruturas internacionais do esporte, nas regras do Comitê Olímpico Internacional (entidade máxima do esporte mundial) e nos estatutos das federações internacionais de esportes, como elementos configuradores do ordenamento desportivo, em todos os países que se mantêm filiados a esses organismos internacionais.

Interessante analisarmos a relação existente entre as entidades desportivas ( de natureza privada ) e o Poder Estatal.

 

“ Ante estas estruturas supraestatais de Direito privado, os poderes públicos podem adotar uma primeira atitude abstencionista, uma segunda intervencionista ou simplesmente optar pela coexistência.”[9]

 

Explica o jurista Inari que, nos ordenamentos do tipo abstencionista, o Estado não intervém na esfera jurídica do desporto. Tal fato nos parece mais difícil, pois a aplicação normativa desportiva disciplina-se, entre outras, conforme as regras de direito privado e nas estruturas internacionais do esporte, de forma que se tornaria uma verdadeira soberania desportiva, realidade vivida somente na primeira metade do século passado. Essa corrente doutrinária é ocupada por aqueles que defendem uma independência total dos entes desportivos, diante da ingerência do Estado.[10]

Evidente que esta autonomia não significa soberania. Esta é elemento e poder inerente à existência de um Estado, uma qualidade implícita neste, como pessoa jurídica titular da soberania para o exercício deste poder de autodeterminação perante outros Estados e, internamente, perante sua população. É o poder supremo e exclusivo estatal no desenvolver de suas leis.

O conceito de soberania é amplo e polêmico, uma vez que engloba não somente os aspectos jurídicos mas os políticos e sociológicos. Nos dizeres do insigne jurista Miguel Reale: “Soberania é o poder que tem uma Nação de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos da sua convivência”[11].

Aliás, o conceito de soberania estatal, derivado das idéias a partir do século XVI, na atualidade vem sendo mitigada pelo poder de grandes organizações internacionais (ONU, OMC, COI, FIFA) e poderosas entidades transnacionais, que se colocam acima dos poderes políticos nacionais.[12] Essa é uma das polêmicas a que Miguel Reale deve atribuir ao conceito da soberania.

Álvaro Melo cita ainda um exemplo clássico, do que ousamos chamar soberania mitigada dos Estados, diante das normas desportivas internacionais:

 

“ Ao se candidatar para a realização dos Jogos Olímpicos, exige-se do país promotor a entrega ao COI de um documento em que se garanta e assegure que, ao longo da realização dos jogos, o direito olímpico prevalecerá sobre o direito interno do respectivo país, na hipótese do conflito ou choque entre referidas normas, o que afasta, temporariamente, a eficácia do princípio da soberania.“[13]

 

Na atualidade, dada a aquisição de distintas facetas do esporte e a relevância social provocada por diversas questões surgidas no âmbito desportivo, à intervenção do poder público na esfera desportiva é tentada cada vez mais. A situação de total independência que caracterizou a prática desportiva e sua estruturação no início de sua história foi uma conseqüência natural de inibição pública, nas bases em que se sedimentou o Estado liberal. Este criou condições para que a atividade desportiva não fosse relevada pelas leis de uma maneira geral, propiciando um fenômeno regulado com exclusividade pelos entes participantes do mundo esportivo. Outra importante condicionante dessa realidade foi o início amadorístico das competições desportivas, movida mais pela vontade e paixão dos praticantes e admiradores, do que por interesses econômicos que praticamente dominam o mundo dos esportes em todas as suas vertentes atuais.

A questão se mantém em qual é o limite da intervenção estatal no âmbito dos esportes. Em muitos países, permite-se a coexistência razoável do ordenamento desportivo mundial e do ordenamento jurídico interno, desde que um absorva as regras específicas desportivas aprovadas universalmente e a esfera esportiva respeite as normas de organização desportiva interna agindo com coerência aos direitos fundamentais, com os princípios gerais de direito e com as leis do país.

As leis esportivas internacionais, promanadas das entidades representativas dos esportes, prevalecem em sua grande maioria, sem comprometer e afrontar a soberania dos países. O desporto, assim como outras questões (direitos humanos, ecologia, comunicação) é matéria transnacional exercida sem exclusividade, ignorando fronteiras, tornando-se universal.[14]

Os problemas se delineiam no momento de se determinar em concreto o conteúdo, o alcance jurídico das regras esportivas e a conseqüência de estabelecer os limites vinculantes derivados do ordenamento internacional do desporto com as leis internas dos países.[15]

Segundo Francesco Paolo Luiso, o ordenamento desportivo não pode impedir que a autoridade estatal intervenha de ofício no âmbito dos esportes. O autor faz uma comparação, mutatis mutandis, das leis de diferentes igrejas e credos religiosos com as regras desportivas.[16]

É dificultoso levar a cabo uma delimitação completa da exata fronteira entre as normas desportivas e as normas jurídicas estatais. Ressalta-se, porém, que uma aproximação certa da linha divisória entre elas exige a preeminência do Direito Estatal, como um direito soberano.

Na atividade desportiva, encontramos normas reguladoras de relações públicas e de relações privadas. No Brasil existem clubes desportivos que são pessoas jurídicas de direito privado, assim como as Federações e Confederações, mas investidas numa missão de serviço público. De outro lado, temos o COB–Comitê Olímpico Brasileiro, órgão máximo do esporte no Brasil, que é uma entidade pública, regida pelas normas de direito público nacional e respeitante das normas de direito internacional privado emanadas do COI–Comitê Olímpico Internacional.

Nesse sentido, a clássica distinção dos ramos do Direito, em público e privado, com seus vários critérios de formação e distinção, amplamente apoiados na doutrina, consensualmente, alega-se que tal divisão não pode ser absoluta, já que o ramo de uma espécie comporta sempre normas do ramo de outra espécie[17].

São vários os critérios para a distinção do Direito Público do Direito Privado. Destacamos os seguintes:[18]

 

– O critério da chamada teoria dos interesses, quando se estaria perante uma norma de direito público, quando esta tutelasse um interesse público, um interesse da coletividade e, perante uma norma de direito privado, quando seu fim fosse a tutela de interesses individuais, particulares. Este critério apresenta defeitos ao passo que todo direito visa proteger simultaneamente interesses públicos e privados, na medida que os interesses particulares tem sempre subjacente a sua integração aos interesses da coletividade em geral, assim como a satisfação de interesses públicos realiza interesses privados;

– O critério do posicionamento das partes, segundo o qual o direito público disciplina relações entre entidades que se mostram numa posição de supremacia e subordinação e o direito privado disciplina as relações entre entidades que se encontram numa posição de relativa igualdade e equivalência. Também se acusam falhas neste critério, ao passo que o direito público regula, muitas vezes, relações entre entidades numa posição de igualdade (como exemplo, relações entre as autarquias públicas) e o direito privado disciplina, em algumas hipóteses, situações que apresentam relativa supra-ordenação (como exemplo, as relações de poder familiar e as relações de consumo);

– O critério da chamada teoria dos sujeitos segundo o qual, o elemento diferenciador seria a qualidade em que atuam os intervenientes na relação jurídica, sendo direito privado o que regula as relações jurídicas entre particulares, ou entre particulares e entes públicos despidos da condição de jus imperi, e de direito público o que regula as relações entre entes públicos dotados do jus imperi e particulares, ou entres os entes públicos em si. Este último critério de distinção é adotado pela maioria dos doutrinadores.

 

Se tais ramos do Direito existem, o direito desportivo é aquele em que a coabitação e o valor desses interesses se acentuam expressivamente. Concluem os juristas portugueses Antonio Bernardino Peixoto Madureira e Luís César Rodrigues Teixeira:

 

“ As normas referenciadas, que constituem o núcleo fundamental do Direito Desportivo, têm, no entanto, quase todas, caráter eminentemente público. E se acrescentarmos a isso o facto de as normas emanadas da jurisdição própria ou específica dos entes desportivos (aquelas que mais se fazem sentir na regulamentação jurídica da actividade desportiva, em geral, e da actividade contenciosa, em especial) terem também, na sua maior parte – parte da regulamentação e disciplina das competições desportivas – natureza pública, entendemos ser de qualificar o Direito Desportivo como um ramo do direito público.”[19]

 

Ainda há aqueles que admitem um controle estatal sobre as federações esportivas. Embora sejam elas entidades de direito privado, exercem uma função pública. Neste sentido, explica Alexandra Pessanha:

 

“        Sendo as federações desportivas habilitadas a desempenhar funções públicas e a exercer poderes públicos, é naturalmente admitido o controle de sua atuação pela Administração.

No entanto, há de se atender a alguns dos aspectos que caracterizam estas entidades e que limitam a instituição de formas de controle que contendam com a sua natureza privada e a esfera de autonomia que lhes é inerente.“[20]

 

Entre essas formas de controle estatais estariam excluídas, como exemplo, a autorização administrativa para sua criação, a aprovação dos estatutos, a homologação de órgãos, a dissolução autoritária da instituição. Baseado em tal conceito, engloba-se a autonomia desportiva constitucional brasileira. Essa autonomia estende-se, inclusive, ao campo disciplinar das competições, relativas ao processamento e à aplicação de sanções punitivas aos infratores das regras esportivas.

Neste diapasão, a autonomia desportiva abrangeria o autogoverno das federações e confederações desportivas, como governo próprio por meio de órgãos representativos eleitos pela coletividade integrante, com uma estrutura interna dos órgãos da administração autônoma, respeitando a liberdade de atuação na realização de interesses próprios, criando poderes indispensáveis às entidades e associações, na forma e modelo de preencher os seus quadros; a autonomia estatutária significaria o direito de elaborar os próprios estatutos, criando regras de funcionamento, definindo o regime econômico-financeiro e as relações com os associados, dentro de limites legalmente pré-estabelecidos; a autonomia regulamentar no âmbito de suas atribuições legais, seria competente para produzir normas de regulagem dos desportos, disciplinando interesses próprios e assuntos diretamente relacionados com seu mister; a autonomia disciplinar e jurisdicional uma vez que as entidades desportivas encontram-se dotadas de capacidade para definir e julgar as infrações cometidas pelos atores do cenário desportivo, quando violam normas fixadas e na medida em que esse poder disciplinar é exercido por órgãos próprios, integrante da Justiça Desportiva dotados de certa independência interna dos demais órgãos administrativos da organização esportiva e seus integrantes.

Perante esta última, a atividade jurisdicional desportiva, à qual incumbe o papel de julgar os litígios emergentes das relações desportivas, a autonomia  se faz presente e bastante polêmica, em vista das regras do parágrafo 1º do artigo 217 da Constituição Federal brasileira e as do parágrafo 1º do artigo 52 da Lei Pelé. Essas normas atestam a possibilidade de revisão e impugnação das decisões da Justiça Desportiva pelo Poder Judiciário brasileiro, através de seus órgãos competentes, assunto que abordaremos em outra oportunidade.

 

Autor: Luciano de Souza Siqueira. Advogado, Mestre em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, professor do Curso de Ciências Jurídicas do Instituto Superior de Ciências Aplicadas de Limeira e da Universidade São Francisco-Bragança Paulista.

 

 

 

TJ/SP decidiu que o art. 217, inciso I, da CF/88, outorga às associações desportivas autonomia que não as obriga a seguir as regras para associações normais de que trata o nCC.

 

Segundo o ilustre advogado Carlos Miguel Aidar (Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar – Advogados e Consultores Legais), que já tratou com propriedade do assunto em Migalhas, a decisão é também uma homenagem ao saudoso professor Miguel Reale, que foi o primeiro a escrever sobre a autonomia das associações esportivas.

 

“O que se conclui, é que tal autonomia às entidades de desporto se mostra plena, quer pelo princípio constitucional quer porque consagrado na lei ordinária.” desembargador Octávio Helene

  • Clique aqui ou veja abaixo o acórdão, voto vencedor e voto vencido.

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ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL n° 520.092.4/5-00 da Comarca de SÃO PAULO, em que é apelante SÃO PAULO FUTEBOL CLUBE, sendo apelados ARNALDO ARAÚJO E OUTROS:
ACORDAM, em Décima Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria de votos, dar provimento ao recurso contra o voto do Relator Sorteado que o negava, de conformidade com relatório e voto do Relator Designado, que ficam fazendo parte deste acórdão. Declara voto o Terceiro Juiz
O julgamento teve a participação dos Srs. Desembargadores TESTA MARCHI (Presidente, sem voto), MAURÍCIO VIDIGAL, com voto vencido e OCTAVIO HELENE, com voto vencedor.
São Paulo, 3 de junho de 2008.

João Carlos Saletti
Relatór Designado

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APELAÇÃO CÍVEL n° 520.092-4/5-00

COMARCA – SÃO PAULO
3o Ofício, Processo n° 15698/2004
APELANTE – SÃO PAULO FUTEBOL CLUBE
APELADO – ARNALDO ARAÚJO E OUTROS
VOTO N° 12.513

ASSOCIAÇÕES DESPORTIVAS – Reformas de estatutos – Autonomia conferida pelo art. 217 da Constituição Federal – Inaplicabilidade do art. 59 do Código Civil – Ações cominatória e anulatória e cautelar julgadas procedentes — Decisão reformada.
Apelo provido.

A r. sentença de fls. 260/269 julgou procedente ação cominatória e anulatória e declarou nulas alterações do estatuto social do réu, realizadas no dia 9 de agosto de 2004, e o condenou a proceder à alteração do estatuto ou adaptação da associação, nos termos do artigo 59, inciso II, do artigo 2.031 e do artigo 2.033, todos do Código Civil de 2.002. De igual modo, julgou procedente a ação cautelar em apenso, cujo objeto foi abrangido pela ação principal.
Foram recebidos embargos de declaração opostos pelos autores, para fixar o prazo de 45 dias, contados da publicação da decisão, para a retirada dos estatutos de todas as alterações reconhecidas como nulas (fls. 276/277).
Apela o réu (fls. 280/309). Sustenta, na síntese bem lançada às fls. 240 pelo eminente Relator sorteado, que o art. 59 do Código Civil não é aplicável às entidades de prática esportiva, em virtude da autonomia prevista pelo art. 217 da Constituição Federal, que as regras previstas pelo Código Civil não são aplicáveis e benéficas aos clubes, que é inviávpl sua aplicação sob o ponto de vista prático e que a doutrina e jurisprudência deste Tribunal vêm adotando esse entendimento.
Os apelados responderam (fls. 314/321).
É o relatório.

  1. Conquanto bem posta a r. sentença apelada, lançada com apuro e excelente fundamentação, o meu voto chega a diversa conclusão, com a devida vênia.

Ao enfrentar, nos autos do Agravo de Instrumento n° 365.818-4/0-00, o pedido de reexame da medida cautelar concedida liminarmente em primeiro grau, sustentei que o ponto central da controvérsia reside em saber se a associação desportiva submete-se ou não às novas regras civis. Artigo do Professor Miguel Reale e pareceres juntos aos autos pelo recorrente, da lavra do Professor Yves Gandra da Silva Martins e do Ministro José Carlos Moreira Alves, asseguram gozarem as associações desportivas da autonomia que lhes concede o artigo 217, I, da Constituição Federal. Tal autonomia é compreensiva de organização e funcionamento e do sistema de reforma dos estatutos, tal como pretende fazer o recorrente, com suporte no estatuto em vigor, atributivo de competência aos órgãos internos que refere, e não à assembléia geral, como manda o artigo 59 do novo Código Civil.
No artigo mencionado (intitulado As Associações no Novo Código Civil, encontrado na íntegra no site do Professor: www.miguelreale.com.br), sustenta o Mestre, no aqui interessante, que

“a questão mais delicada se refere à eleição dos dirigentes pela assembléia geral, porquanto se configuram várias hipóteses à luz do estatuto social, devendo-se considerar, desde logo, proibida a eleição por outro órgão que não seja a assembléia geral, como, por exemplo, os chamados associados fundadores.
“Isto posto, todavia, não procede o entendimento de que a escolha deva sempre ser feita de uma só vez e para a totalidade dos cargos a serem preenchidos, podendo o estatuto prever a eleição em períodos distintos, de um ou mais anos, com renovação periódica/è parcial do mandato dos diretores.

“Não é dito, assim, que os cargos que compõem a Diretoria da associação devam ser eleitos pela assembléia geral, para cada um deles, podendo o estatuto social estabelecer a escolha por ela de todos os componentes de um Conselho, cabendo a este. depois, a designação, dentre os seus membros, dos titulares dos cargos de direção.
“Com tais medidas fica preservado o direito dos associados de decidir livremente sobre o processo de administração que julguem mais adequado aos interesses da entidade, preferindo a eleição indireta de seus diretores, bem como que a eleição não seja global, mas apenas para uma das partes do Conselho, na proporção e datas previamente estabelecidas.
“Parece-me que a eleição dos dirigentes feita em dois ou mais pleitos é a mais indicada para as associações de grande porte e com valores da tradição a serem preservados, visto como. com tais providências, a renovação do quadro dirigente se operará sem rupturas e descontinuidade indesejáveis.
“Como se vê, o entendimento que estou dando às determinações do novo Código Civil sobre associações é o que melhor atende ao exercício da “liberdade de associação” assegurada pelo Inciso
XVII do artigo 5o da Constituição federal, sem o seu prejudicial engessamento, resultante de restrita interpretação da lei, sem se atender ao valor essencial da liberdade.”

Esse pensamento ajusta-se ao caso vertente, não obstante dizer a controvérsia respeito, não diretamente à eleição dos dirigentes (em última análise o objetivo a alcançar pela medida proposta pelos recorridos), mas à modificação do estatuto social, uma das hipóteses elencadas pelo artigo 59 do novo Código Civil (na redação atual, resultante da Lei 11.127/05).
Contrapõe-se o argumento de que a liberdade de associação e de organização, como princípio superior, e o exercício da autonomia, submetemse às normas gerais estabelecidas na lei, tal qual acontece com as empresas e sociedades. O ilustre Julgador de primeiro grau refere no particular a doutrina de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, 2a Ed., vol. 2, Editora Saraiva, São Paulo, 1999, pág. 264), para quem a “autonomia é autodeterminação dentro da lei”, e de CELSO RIBEIRO BASTOS E IVES GANDRA MARTINS (Comentários à Constituição do Brasil, 8o vol., Ed. Saraiva, são Paulo, 1998, p. 745), também invocados pelos apelados (cf. fls. 214, 2.9), segundo os quais “a autonomia conferida às entidades desportivas não deve ser confundida com independência muito menos soberania; (…) Pode-se conceituar autonomia como a faculdade de que gozam as entidades desportivas dirigentes e as associações de se autogovernar e se organizar, desde que respeitadas as normas vigentes em nosso ordenamento jurídico”.
Os apelados, a propósito, trazem à baila o julgamento (iniciado à
época da medida liminar cautelar, mas não concluído, da ADIN n° 3045, posto extinto o processo sem julgamento do mérito, por desistência por parte do autor da ação) pelo C. Supremo Tribunal Federal, relator o Ministro CELSO DE MELLO, que já pronunciara voto no sentido da constitucionalidade do estatuto civil, afastando a idéia de que a “cláusula constitucional da autonomia … não pode ser invocada”, pois “necessária a observância das regras gerais fundadas na legislação civil quando se faz agremiações, entidades marginais e outros”, pois essas associações não estão imunes à ação normativa do Estado.
Cópia do voto me foi encaminhada pelos recorridos, à guisa de memorial.
A autonomia pretendida pelo recorrente, de conformidade com a
regra do artigo 217 da Constituição Federal, não é soberania, de tal arte fique a associação desportiva imune ao regramento legal. A Constituição afirma (no caput do art. 217) ser “dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados” {caput do art. 217) “a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento” (inciso I).
A norma constitucional estabelece, para as associações desportivas, o princípio da autodeterminação e da auto-regulaçâo, quanto a sua “organização e funcionamento”.
Essa regra (a do artigo 217 da Constituição), segundo entendo, é disposição especial que convive com a do artigo 5o, XVII (referida pelo Professor Miguel Reale). A segunda limita-se a assegurar direito “à plena liberdade de associação para fins lícitos”. Porque assecuratória de direito fundamental, a previsão não regula o exercício desse direito, que por isso mesmo se submete ao regramento legal pertinente, des’que preservada a “plena liberdade” de associar. Já a regra especial, lançada no Capítulo III, destinado à regulação da “Educação, da Cultura e do Desporto”, não se limita (na Seção III, do Desporto) a autorizar a organização e o funcionamento “entidades desportivas dirigentes e associações”, mas assegura-lhes autonomia “quanto à sua organização e funcionamento”.
A previsão constitucional nesses termos permite ver, como já acenara ao julgar o agravo de instrumento atrás mencionado, não
inconstitucionalidade na disposição da lei civil, mas inaplicabilidade dela no que concerne às associações desportivas. Não quer isso dizer que as associações desportivas gozem, não de autonomia, mas de soberania, porque assim pensar as colocaria à margem da lei, a cujos princípios todos se submetem. Não. Mas, estabelecendo para a associação desportiva autonomia para organizar-se e funcionar, por certo que a conduta do apelante não fere a regra em questão do Código Civil, tanto mais quando não se entrevê suprimido um direito sequer dos autores no processo de reforma estatutária, consoante, aliás, já salientara no julgamento do agravo de instrumento de início mencionado.
Em resposta a consulta formulada pelo apelante, o Prof. Dr. JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, que ornou como Ministro a mais Alta Corte deste País por duas décadas, emitiu parecer conclusivo de que

“Assim fixados o sentido e os limites da autonomia especial que o artigo 217, I, da Constituição concedeu às associações desportivas, e tendo em vista que as normas contidas no artigo 59 do novo Código Civil relativas à competência e a funcionamento de um dos órgãos que integram essas pessoas jurídicas se situam no terreno da organização e do funcionamento das referidas associações desportivas, com relação a elas não tem ele incidência, não se lhes aplicando conseqüentemente.”

Na fundamentação, refere o eminente Jurista o pensamento de VON THUR, que “exclui da esfera de organização (das associações) as normas que se referem às relações da associação com os terceiros, as sobre os negócios jurídicos por elas celebrados e sobre os delitos de seus representantes, as relativas à perda e supressão da sua capacidade jurídica e as referentes a sua liquidação na medida em que atingem interesses de terceiros” (cf. fls. 381 e 382 do apenso).
O resguardo da sociedade em geral, nesses termos, permite compreender que a autonomia assegurada pela Constituição Federal às associações desportivas não é levada às raias da soberania e toca apenas ao que é de seu particular interesse, quer dizer, à sua organização e funcionamento, âmbito em que inserta a questão discutida nestes autos.
Diz-se que a eleição indireta ou a forma indireta de regulação estatutária fere princípio democrático. Não se olvide, todavia, que a formação (em que pese a presença dos Conselheiros Vitalícios) de órgãos deliberativos e conselhos das associações desportivas como a recorrente acontece mediante eleição direta dos sócios, como lembra o Professor MIGUEL REALE no artigo em apreço, com que se preserva o pleno exercício do poder pelo associado, porquanto,

“Não é dito, assim, que os cargos que compõem a Diretoria da associação devam ser eleitos pela assembléia geral, para cada um deles, podendo o estatuto social estabelecer a escolha por ela de todos os componentes de um Conselho, cabendo a este, depois, a designação, dentre os seus membros, dos titulares dos cargos de direção.”

Registro, por fim, que não obstante restrita a discussão a tutela antecipada, a E. Segunda Câmara desta Corte, tendo como Relator o Desembargador J. ROBERTO BEDRAN chegou a conclusão semelhante no julgamento do Agravo de Instrumento n° 293.980-4/0-00, afirmando, na ementa do v. acórdão, que

“O art. 59 do novo Código Civil não leva à convicção certa e induvidosa de que a eleição dos dirigentes de associações e clubes desportivos, em assembléia geral, respeitados os princípios constitucionais da autonomia de organização e funcionamento (art. 217, I, CF.) e da liberdade de associação (art. 5o, XVII, C.F.), só possa ser a direta, pelos próprios sócios, e não a indireta, em dois ou mais pleitos”.

Em semelhante sentido, mas atinente a reforma dos estatutos, resolveu a E. Primeira Câmara (Agravo de Instrumento n° 322.990-4/0-00, relator o Desembargador MORATO DE ANDRADE) que

“Não pode ter sido intenção do legislador, no artigo 59 do novo Código Civil, fazer incidir a regra do inciso IV às agremiações de
grande porte, como o Clube-réu, tornando materialmente impossível qualquer reforma dos estatutos.

“Acrescente-se que, entendida a lei por aquela forma, seria a mesma de duvidosa constitucionalidade, uma vez que o artigo 217 inciso I da Carta Magna obriga o Estado a respeitar “a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quando a sua organização e funcionamento.”

  1. Deixo de atender pedido formulado nas contra-razões, de que
    sejam riscadas expressões lançadas no recurso, por não entrever tenha o recorrente agido de forma insultuosa contra os apelados, cuja honra e respeitabilidade foram expressamente salientadas no apelo.

Não vejo má-fé na conduta dos autores. O que eles sustentaram
antes da propositura da ação não os vinculava ou não os impedia de mudar de opinião e demandar como demandaram, a menos agissem animados por sentimentos inferiores.

  1. Ante o exposto, dou provimento ao recurso para julgar improcedentes as ações ordinária e cautelar, invertidos os ônus da sucumbência.

É meu voto.

João Carlos Saletti
Relatar Designado

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DECLARAÇÃO DE VOTO VISTA VENCEDOR

APELAÇÃO CÍVEL n° 520.092.4/5-00
Comarca: São Paulo

Apelante: São Paulo Futebol Clube
Apelado: Arnaldo Araújo
Voto Vista n° 10.862
A questão que é posta em exame diz respeito a se saber se o artigo 59, incisos e parágrafo do Código Civil, que, ao cuidar das associações, Capítulo II, estabelece competir privativamente a Assembléia Geral a destituição dos administradores e a alteração dos estatutos, tem ou não incidência às entidades desportivas, isso, considerando o que dispõe o artigo 217, da Constituição Federal que, ao disciplinar o desporto, confere autonomia às entidades desportivas dirigentes e associações, quanto à sua organização e funcionamento (grifei), ao mesmo tempo em que consagra como dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observado aquele princípio, da autonomia, conferido a tais entidades e outras providências que dizem respeito a tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional, que vão referidas nos itens seguintes daquele dispositivos constitucional. Observo que o referido artigo 59, do Código Civil, antes de vir alterado pela Lei n°11.127/05, que lhe deu nova redação, também admitia competir a Assembléia Geral a eleição dos administradores e a aprovação de suas contas, situações fáticas retiradas do texto. De qualquer modo, ficou mantida a possibilidade privativa da Assembléia Geral para alterar o estatuto da associação, o que, para exame do presente recurso, aquela alteração nada interfere, até porque, o que se cuida no caso é a possibilidade da alteração do estatuto da associação desportiva apelante, como deverá vir procedida tendo-se em conta o dispositivo constitucional do art. 217 e o referido artigo 59, do Código Civil, já com alteração da referida Lei n°11.127/05.
Entendo que para um exame mais seguro da questão proposta, necessário que se determine quais os princípios fundamentais consagrados pela Constituição Federal ao desporto e, em decorrência disso, a autonomia e liberdade de organização que foi dada a essa espécie associativa. Já a lei ordinária consagrou alguns princípios que devem vir observados pelas associações desportivas. É o que se verifica do Capítulo Segundo, da Lei Federal n°9.615, de 24 de Março de 1.998, que instituiu normas
gerais sobre desporto, dando outras providências, quando, no artigo 2o, consagra como princípio, que o desporto, como direito individual, terá autonomia definida pela faculdade e liberdade de pessoas físicas e jurídicas se organizarem para a prática desportiva. Então, a lei ordinária expressamente consagra para a associação desportiva a autonomia em sua organização. Têm, então, as entidades que se dedicam à prática desportiva, liberdade para se organizarem, entendendo-se que essa liberdade de organização alcança a liberdade de escolha de uma estrutura jurídica e administrativa propícias aos seus fins; a modalidade desportiva qualquer que seja ela. Consagrado esse princípio, verifica-se que a mesma Lei n°9.615/98, ao cuidar do “Sistema Nacional do Desporto”, na Seção IV, em seu artigo 16, reafirma a autonomia organizacional, quando estabelece:
“Art. 16 – As entidades de práticas desportivas e as entidades nacionais de administração do desporto, bem como as ligas de que trata o art. 20, são pessoas jurídicas de direito privado, com orqanização e funcionamento autônomo, e terão as competências definidas em seus estatutos” (o grifo não consta do original). A organização desportiva do país vem fundada no princípio da liberdade de associação, então, na organização livre de empresa no desporto profissional (MP 39, §2°, do art. 4o, princípio acrescentado ao art. 2o, da Lei n°9.615/98).
Sendo assim, mostra-se possível admitir-se que as normas desportivas na legislação ordinária garantem o direito de tais associações desportivas, que integram o “Sistema Nacional do Desporto” (art. 13, da Lei n° 9.615/98), de se organizarem com autonomia para a consecução de seus fins, sem qualquer ingerência estatal.
Examino, agora, a questão quando subordinada a disciplina Constitucional. Do que ficou exposto, a Lei n°9.615/98 consagra, como princípio, a liberdade de organização administrativa e dirigente de que gozam as associações desportivas fundadas na autonomia que lhes é reconhecida. Observo, posta tal questão, que o inciso XVII, do artigo 5o, da Constituição Federal, consagra ser “plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”. Então, como já ficou ressaltado, é plena a liberdade de associação vedada a intervenção estatal; cláusula pétrea (art. 60, parágrafo 4o, da CF), portanto, questão insuscetível de deliberação legislativa. Anoto, de outro lado, que a Constituição Federal cuidando dos princípios gerais da atividade econômica, declara ser esta fundada na livre iniciativa. As associações de desporto, que congregam clubes de futebol, dentre estas, a associação apelante – “São Paulo Futebol Clube” -, como é notório, em seu fim social, exercem atividade econômica, gerando empregos, impulsionando a economia nacional quando desempenham sua função específica – a prática do futebol profissional -. Várias são as atividades correlatas – transferência de jogadores, patrocínios, contratos com emissoras de televisão -, enfim, dentro da atividade desportiva se insere a econômica onde, nesta, é assegurada não só a liberdade de associação como fica vedada a intervenção estatal. Então, essa atividade econômica mostra-se livre, cabendo ao Estado fiscalizar os seus fins e ao mesmo tempo incentivar o seu planejamento. Ora, postas essas premissas – livre associação para fins lícitos e exercício da atividade econômica das associações dedicadas ao desporto -, o artigo 217, da Constituição Federal, veio assegurar, expressamente, a autonomia às entidades desportivas dirigentes (federações e confederações) e associações (clubes), no tocante a sua organização e funcionamento, consagrando, então, o princípio da autonomia desportiva, já objeto da lei ordinária, como ficou visto. Têm os clubes de futebol autonomia constitucional, também garantida pela lei ordinária, de se organizarem quanto aos seus fins sociais e, bem assim, quanto aos seus órgãos diretivos, no que concerne à forma de eleição de seus dirigentes. Ressalta-se que o artigo 217, inciso I, da Constituição Federal, ao estabalecer que as entidades desportivas têm autonomia quanto a sua organização e funcionamento, não lhes impôs, naqueles limites, nenhuma restrição. Aliás, a redação original do aludido dispositivo (posto no artigo 215), estabelecia que as entidades desportivas dirigentes e associações teriam autonomia quanto à organização e funcionamento internos.
Na redação final do artigo, passado para o 217, incisos e parágrafos, ficou suprimida a palavra internos do texto estabelecido no inciso I, mantida às entidades desportivas dirigentes e associações, a autonomia quanto a sua organização e funcionamento, o que faculta que se entenda que tal autonomia não vem limitada, mas plena e não, tão só, interna.
O que se conclui, é que tal autonomia às entidades de desporto se mostra plena, quer pelo princípio constitucional quer porque consagrado na lei ordinária. É verdade, que o Código Civil, Lei n° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002, que entrou em vigor em 11 de Janeiro de 2003, posterior à lei ordinária já referida e à Constituição Federal em vigor, cuidando das associações, em seu art. 59, confere à assembléia geral a alteração dos estatutos, a eleição e a destituição dos administradores, deixando de fazer a ressalva quanto às entidades do desporto que já gozavam, quer pela lei ordinária quer por princípio constitucional, da autonomia para se organizarem. Aqui, abro um parênteses, para fazer, como o fez o d. Revisor, referência a artigo da lavra do sempre lembrado PROFESSOR MIGUEL REALE, com o título “As Associações no Novo Código Civil”, artigo esse, objeto de exame no processo e de menção em plenário, quando da sustentação oral do d. Procurador do apelante, quando o e. Professor lembra … “não procede o entendimento de que a escolha (dos dirigentes) deva ser feita de uma só vez e para a totalidade dos cargos a serem preenchidos, podendo o estatuto prever a eleição em períodos distintos, de um ou mais anos, com renovação periódica e parcial do mandato dos diretores”, completando:
“Não é dito assim, que os cargos que compõem a Diretoria da associação devam ser eleitos pela assembléia geral, para cada um deles, podendo o estatuto social estabelecer a escolha por ela de todos os componentes de um Conselho, cabendo a este, depois, a designação dentre os seus membros, dos titulares dos cargos de direção”. Essa lúcida colocação, de certo modo, ampara a autonomia das associações desportivas, no ponto, em que vem admitida a possibilidade de os cargos da diretoria virem eleitos, não pela assembléia geral, “podendo o estatuto social prever a eleição”; não é dito assim, completa o Professor, “que os cargos que compõem a Diretoria da associação devam ser eleitos pela assembléia geral, o que pode vir previsto pelo estatuto social”. Portanto, as associações desportivas são livres para estabelecer um modo de eleição de seus respectivos diretores, podendo estes últimos, serem eleitos ou pela Assembléia Geral, ou pelos Conselheiros, ou ainda por qualquer outro modo que o Estatuto Social venha a definir, sem se submeterem a eventual restrição imposta pelo Código Civil. Se, antes já me convencia pela autonomia conferida às associações desportivas de se organizarem, com conforto de tal entendimento, possível o Estatuto Social prever o modo de escolha do dirigente da associação, sem que, necessariamente, seja o dirigente eleito por Assembléia Geral. A omissão do Código Civil nesse ponto específico – autonomia -, vem complementada e, portanto, afirmada na Constituição Federal que é hierarquicamente superior à lei ordinária.
De todo o exposto, com renovado pedido de vênia ao e. Relator, Desembargador Maurício Vidigal, neste recurso, acompanho o ilustre Revisor, Desembargador João Carlos Saletti, para, também, dar provimento ao apelo para julgar improcedentes as ações ordinária e cautelar, invertida a sucumbência. É como voto!
OCTAVIO HELENE
Desembargador 3o Juiz

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DECLARAÇÃO DE VOTO VENCIDO
Apelação n° 520.092-4/5-00- São Paulo
Voton° l1. 268
A r. sentença resolveu bem a lide, merecendo ser mantida pelos seus próprios e jurídicos fundamentos. Sustentou o digno magistrado com sólida fundamentação que a autonomia das entidades esportivas, prevista no art. 217, I, da Constituição Federal, não impede a aplicação de normas gerais de direito civil à organização delas. Em abono de seu entendimento ele se referiu a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, segundo a qual “Autonomia é autodeterminação dentro da lei”, e de Celso Ribeiro Bastos de que “A autonomia conferida às entidades desportivas não deve ser confundida com independência e muito menos soberania”, sendo faculdade de se organizar “desde que respeitadas as normas vigentes em nosso ordenamento jurídico”. Sustentou então que não há confronto entre as normas do Código Civil que ao dispor sobre regras de reforma do estatuto de associações, objetivou assegurar o caráter democrático delas, e a autonomia constitucional.
O relator deste observou em julgamento de agravo de instrumento que “deve anotar-se que a autonomia referida pode pretender apenas impedir que as entidades desportivas fiquem submetidas à orientação ou supervisão do Poder Executivo Federal como eram anteriormente; elas não escapam, como todas as demais pessoas jurídicas do país, de submissão a regras gerais de constituição e funcionamento. Prevalece a presunção de constitucionalidade da lei.
Como ensina Carlos Maximiliano, “Todas as presunções militam em favor da validade de um ato, legislativo ou executivo” (Hermenêutica e Aplicação do Direito”, pág.319, 8o ed., Livraria Freitas Bastos).”
Assim é que a Constituição Federal estabelece no inciso XVIII, do seu art. 5 °, que é vedada a interferência estatal no funcionamento de associações e cooperativas, no seu art. 17 ser livre a criação de partidos políticos, observados alguns preceitos, com autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento, no seu art. 99 autonomia administrativa e financeira ao Poder Judiciário, no § 2o, do seu art. 127, autonomia funcional e administrativa para o Ministério Público, no § 2o, do seu art. 134, autonomia funcional e administrativa às Defensorias Públicas e em seu art. 207 autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial para as universidades. Em todos esses casos, a não interferência, liberdade ou autonomia não são motivos para que as instituições tratadas deixem de cumprir leis gerais relativas às suas atividades.
Na crítica à sentença, o réu preocupa-se na demonstração de que a reforma levada a efeito representou o pensamento dominante de parcelas expressivas do seu quadro social.
A crítica é irrelevante, porque nada diz da inconstitucionalidade alegada. Em seguida, são lançadas alegações relativas ao direito constitucional de associação. Contudo, as normas do Código Civil não as infringem ao estabelecer critério do procedimento de reforma dos estatutos. Como já afirmado, autonomia não é soberania. Referem-se depois a parecer do ilustre Professor Ives Gandra para quem a autonomia prevista pelo art. 217, I, da Constituição Federal, é diversa da estabelecida de forma geral para associações sejam ou não esportivas, porque, se não o fosse, o primeiro texto seria dispensável.
É regra de interpretação que a lei não pode contar com palavras inúteis, bem como com dispositivos inúteis. No entanto, o elemento histórico não pode ser desprezado na exegese da regra em questão.
Antes do advento da nova Constituição, era constante a intervenção estatal nas atividades esportivas, motivada inúmeras vezes por questões políticas. Dizia-se até que onde o partido político do governo ia mal se indicava mais um time para participar do campeonato nacional. A repetição no art. 257, I, da autonomia já concedida pelo inciso XVIII, do art. 5o, da Carta Magna, objetivou dar ênfase ao já estabelecido. Associações esportivas ou não podem organizar-se livremente, atendidos os requisitos legais de ordem geral, e não pode haver interferência estatal no seu funcionamento a não ser que ele contrarie leis de caráter geral. A prova da existência dessa exceção é que suas atividades podem ser suspensas ou extintas por atos judiciais, conforme previsão expressa constitucional.
Sustentada adiante no recurso a impraticabilidade de cumprimento das regras do Código Civil, repetem-se a propósito considerações já feitas anteriormente pelo relator deste: “Não há também a impossibilidade de aprovar a reforma proposta em assembléia com comparecimento mínimo de um terço em segunda convocação e voto favorável de dois terços dos presentes. A lei não define a forma pela qual a assembléia deva realizar-se. Nada impede que ela dure vários dias, que os votos sejam colhidos em urnas, com uso de procurações ou do serviço postal. O essencial é que sejam colhidas manifestações de um terço dos associados em condições de votar e que dois terços dos que comparecerem, tenham ou não votado, aprovem a reforma. Os estatutos podem mesmo dispor que o Conselho Deliberativo aprove a reforma inicialmente e que depois ela seja submetida aos associados para a aprovação legal. Se os líderes da associação conseguem quorum tão elevado em eleições, não se vê a razão de temerem não o obter em reformas de estatutos. E evidente que os dois terços podem ser de difícil obtenção quando for muito acirrada a disputa política, mas a intenção da lei parece ser fazer com que as alterações representem melhor a vontade dos associados, afastando maiorias ocasionais de pequenos grupos. Vale anotar que a eleição de parte do Conselho Deliberativo prevista pelos estatutos do agravante já se faz em assembléia que dura oito horas e que colhe a manifestação dos sócios por meios de votos lançados em urnas: assembléia não é apenas uma reunião em que as pessoas reúnem-se no mesmo local e manifestam-se oralmente; ela pode ser realizada de outras formas.”
“Nesse ponto, não se vê modificação substancial no tempo decorrido desde então. A Adim foi julgada extinta sem apreciação do mérito e antes disso apenas o Ministro Celso de Mello externou sua orientação sobre a questão debatida. O quorum para aprovação da reforma foi alterado ifela lei (Lei de n° 11.127/2005 que conferiu nova redação ao art. 59 do Código Civil). Continuou a ser questionada doutrinariamente a constitucional idade da disposição quanto às associações desportivas.”
“Outra espécie de consideração pode agora ser lembrada. Se há necessidade de reforma dos estatutos para sua adaptação à lei civil e se esta não mais dispõe sobre o quorum necessário, será a própria assembléia que o fixará, como ato preliminar, para a primeira deliberação a ser tomada sobre os estatutos depois da nova legislação. Esse raciocínio aproveita aos autores, porque é mais um fator de afastamento da impossibilidade de cumprimento da nova lei, motivo que também tem sido alegado para o sustento da tese de que a legislação civil não pode ser aplicada às organizações esportivas.”
Realmente, que dificuldade pode ter a assembléia do clube para reformar os estatutos se ela própria é que irá fixar o quorum necessário para esse ato. É evidente que a reforma terá de ser de agrado dos associados em geral, e não de um pequeno grupo que forma o conselho da associação, que muitas vezes, como é sabido, em certas associações, é instrumento de manutenção do próprio poder. A lei, assim, favorece o funcionamento democrático da entidade. Transcreve-se então no recurso opinião do Professor Miguel Reale sobre o caráter democrático da eleição indireta. É bem verdade ser perfeitamente possível que nessa espécie de pleito se obtenha resultado conforme a vontade da maioria dos associados. Ele não é espúrio, mas, durante o domínio dos militares que sempre contou com o apoio do conhecido jurista, argumentos semelhantes foram utilizados para perpetuar a ditadura e impedir a livre manifestação popular por meio de eleições indiretas. A lei preferiu que em determinadas hipóteses ele não fosse adotado nas associações e nada há de inconstitucional em sua determinação.
Outras alegações constantes do recurso, entre elas, pareceres de notáveis juristas, não reflitam diretamente os argumentos da sentença.
Argumentos de caráter político interno não têm repercussão processual. Não há ofensa em qualificação do procedimento dos autores que deva ser objeto de censura. Em lutas políticas, os procedimentos de todos os litigantes são naturais.
Também não há deslealdade processual no acirramento de ânimos.

Como a eficácia da cautelar, mesmo revogada a iminar por decisão deste tribunal, deve permanecer até o julgamento final da ação principal, sua procedência impõe-se em virtude do róprio acolhimento da ação principal.
Pelo exposto, neguei provimento à apelação.

MAURÍCIO VIDIGAL
Declaração de voto vencido

 

[1] O Novo Direito Desportivo. São Paulo: Ed. Cultural Paulista, 2002, p. 65.

 

[2] Idem, p. 64.

[3] Dicionário Aurélio, 1ª ed., 13ª impressão, p. 1139.

[4] Curso de Direito Administrativo. 9ª ed. . São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 450/451.

[5] Fundamentos da Constituição. Coimbra: Ed. Coimbra, 1991, p. 49.

 

[6] Idem.

[7] Curso de Direito Constitucional Positivo. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 99.

[8] Celso Bastos, Curso de Direito Constitucional, 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 161.

[9] Inari Agirreazikuenaga, Intervencion Publica en el Deporte, 1ª ed.: Civitas, 1998, p. 62, tradução livre do autor: “Ante estas estructuras supraestatales de Derecho privado, los poderes públicos pueden adoptar una primera actitud abstencionista, una segunda intervencionista o simplesmente optar por la coexistencia.

[10] Idem.

[11] Teoria do Direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Liv. Martins, 2000, p. 123.

[12] Álvaro Melo Filho. Ob. cit., p. 67.

[13] Idem, p. 68.

 

[14] Álvaro Melo Filho, Idem.

[15] Inari Agirreazikuenaga, Ob. cit., p. 64.

[16]  Giustizia Sportiva-Estratto dal Digesto. IV Edizioni, vol. XI: Utet, p. 581.

[17] Antonio Bernardino Peixoto Madureira e outro, Futebol – Guia Jurídico. Porto: Almedina, 2001, p. 1566.

[18] Idem.

[19] Ibidem, p. 1.568.

[20] As Federações Desportivas. Coimbra: Coimbra Editores, 2001, p. 126.